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segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Homenagem a Sottomayor Cardia

Liberdade sem Dogma, livro de homenagem a Mário Sottomayor Cardia (1941-2006) e organizado por Carlos Leone e Manuela Rêgo será hoje lançado na Fundação Mário Soares às 19 horas. Sottomayor Cardia destacou-se pela sua coragem física e intelectual. Interveio na sociedade portuguesa como um intelectual controverso, político e académico. Casou em 1964 com a escritora Luísa Ducla Soares. A sua experiência política como Ministro da Educação dos dois primeiros Governos Constitucionais, deputado da Assembleia Constituinte e deputado à Assembleia da República (1983 a 1991) é realizada como meio de levar à prática o seu pensamento político e pretexto para novas reflexões. O livro reúne testemunhos e estudos sobre esta personalidade multifacetada introduzidos por um texto de Carlos Leone, seu antigo aluno de Filosofia Social e Política na Universidade Nova de Lisboa. Dão testemunho do seu convívio com Cardia, Mário Cláudio, José de Vargas dos Santos Pecegueiro, Gastão Cruz, Vasco Vieira de Almeida, António Reis, L.A. Costa Dias, Jorge Miranda, Maria Emília Melo, Mário Soares, José Medeiros Ferreira e Cristina Lisboa. A secção Estudos contém textos de Daniel Melo, Miguel Real, Manuel Filipe Canaveira, José Castelo, João Miguel Almeida, José Leitão, António Braz Teixeira.
Num blogue como o Não Apaguem a Memória, destinado a preservar a memória da resistência e oposição ao Estado Novo, vale a pena esboçar um resumo do trajecto intelectual e político de Sottomayor Cardia durante o período da ditadura, a partir dos diferentes contributos do livro de homenagem.
Mário de Sottomayor Cardia já na adolescência se distingue pelas preocupações intelectuais e desejo de intervenção política, como recorda Mário Cláudio, seu colega de liceu. Em 1955 é expulso do liceu D. Manuel II por tomar posições contra a política colonial portuguesa. Três anos depois apoia a candidatura de Humberto Delgado a Presidente da República. Vem para Lisboa estudar Direito, na Universidade de Lisboa, mas troca este curso pelo de Filosofia. Destaca-se como dirigente estudantil, sendo, em 1961-62, presidente interino da comissão pró-associação académica da Faculdade de Letras. Com Alberto Teixeira Ribeiro, coordena as juntas de acção patriótica dos estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Intervém activamente na crise académica de 62. Em Maio participa na «greve de fome» na cantina da cidade universitária, sendo um dos mil estudantes presos por tal manifestação. Em Junho é expulso da Universidade de Lisboa por dois anos e meio. Por esta razão, conclui os estudos universitários em Coimbra.
Ainda em 1962, adere ao Partido Comunista Português. Nas eleições de 1965 participa, com José Medeiros Ferreira, nas lutas de unidade da Oposição Democrática as quais, em Lisboa, eram encabeçadas por Mário Soares. É um dos candidatos da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) em 1969. Quatro anos antes, o seu trabalho intelectual ganha maior projecção com a sua entrada como redactor para a Seara Nova. Cardia pretende dar nesta revista o seu contributo para encontrar soluções democráticas e socialistas aos problemas da sociedade portuguesa. A relevância do seu papel é reconhecida quando se torna, em 1968, chefe-de-redacção da revista, cargo que exercerá até 1974. António Reis declara no seu testemunho (p.50): «Cardia, não receio dizê-lo, foi a grande alma dessa “Seara”, tal como Raúl Proença o fora da primeira “Seara” dos anos vinte». Data também de 1968 o início do seu afastamento intelectual do PCP, devido a leituras dos acontecimentos da Primavera de Praga divergentes da do seu partido.
O grupo da Seara Nova possuía, além da revista, uma editora, que Sottomayor Cardia encara como uma oportunidade de divulgar e defender as suas ideias. No inicio da década de 70 publica dois volumes de antologia da revista, seleccionando escritos dos seareiros mais importantes durante a I República, obra à qual Manuel Filipe Canaveira dedica o seu estudo. Outros títulos publicados sob a chancela da Seara Nova são o Dilema da Política Portuguesa (1971) e Por uma Democracia Anticapitalista (1973), ambos apreendidos, e Sobre o Antimarxismo Contestatário (1972). Este último livro é escrito como resposta a um livro de António José Saraiva sobre o Maio de 68. Segundo Miguel Real (p, 105), que dedica um ensaio à controvérsia, «ambos os polemistas tinham militado no Partido Comunista Português e ambos tacteavam alternativas políticas e sociais tanto ao sistema político capitalista quanto ao sistema soviético». A heterodoxia marxista de Sottomayor Cardia afirma-se noutro texto de polémica com Pedro Ramos de Almeida, sob o pseudónimo de M.J.A. Teixeira.
Esta heterodoxia que o afastava do PCP leva-o a aderir ao PS aquando da fundação do partido, em 1973, juntamente com António Reis e Marcelo Curto. Mário Soares (p. 62) dá testemunho da importância desta adesão: «Constituiu isso uma considerável mais-valia para o Partido, uma vez que eles tinham então muita influência nos meios esquerdistas civis e militares, na juventude e nos sindicatos.» Por uma democracia anticapitalista é já um livro escrito na esfera ideológica do PS, que diagnostica os bloqueios do regime ditatorial, procurando as possíveis linhas de fractura que permitissem a instauração em Portugal de uma democracia socialista.
A heterodoxia de Cardia facilitava-lhe a discussão com os católicos das relações entre marxismo e cristianismo. José Leitão recorda, no seu texto, os debates sobre este tema promovidos pela Juventude Universitária Católica e onde participaram, juntamente com Sottomayor Cardia, o padre Manuel Antunes e o padre João Resina.
A par da sua actividade partidária, Sottomayor Cardia, intervém, como mostra Daniel Melo no seu estudo, em cooperativas que criticam a situação e buscam alternativas ao regime: a Pragma, a Devir, a Estudos de Documentação; em associações como a Sociedade Portuguesa de Autores e o Centro Nacional de Cultura; em organizações cívicas como a Comissão Promotora de Voto (delegação de Lisboa, 1969), a Comissão nacional de Defesa da Liberdade de Expressão (1971/72), a Comissão Coordenadora do III Congresso de Aveiro (1973), a Comissão de Luta pelas Liberdades Políticas (1973), a Liga Portuguesa dos Direitos do Homem. Ou seja, Cardia era um homem que procurava intervir plenamente na busca de respostas aos problemas do seu tempo, sem abdicar de, pela reflexão, procurar ver além das circunstâncias e de alargar horizontes mentais.
Nota: todas as citações referem-se a LEONE, Carlos; RÊGO, Manuela, Liberdade sem Dogma. Testemunhos e Estudos sobre Sottomayor Cardia, Lisboa, Tinta-da-China, 2007.