sábado, 23 de junho de 2007

A censura saiu à rua num dia assim

Foi num 22 de Junho, em 1926, que uma nota da Polícia Cívica enviada às redacções estipulava a obrigatoriedade de serem apresentados quatro exemplares de cada jornal a publicar, na sede da GNR no Quartel do Carmo a fim de ser previamente examinado e aprovado ou não.

Assim começou em Portugal a mais longa, a mais dura, a mais abjecta, censura prévia à Imprensa da nossa História. E não vale a pena alegar que tivemos outras: a Inquisição de D. João III, a Real Mesa Censória de D. Maria I, as leis do cacete com o Senhor D. Miguel, e, desde sempre, os “Imprimatur” dos Bispos em cada diocese, o “Index Librorum Prohibitorum” em todos os países católicos, que durou até ao Concílio do Vaticano II.

Nada de comparável: falamos de um Estado formalmente laico e republicano, em que continuava em vigor a Lei da Separação da Igreja e do Estado. É verdade que tínhamos assistido a alguns períodos breves de censura prévia à Imprensa: num governo Afonso Costa durante a I Grande Guerra, ou no consulado de Sidónio Pais. Ver a este propósito A Censura na Iconografia e na Caricatura Portuguesa, um livro coordenado pelo João Mario Mascarenhas, da Biblioteca Museu República e Resistência.

Nada de comparável: aquela censura que “saiu à rua num dia assim”, com pezinhos de lã e ar de coisa passageira, ia durar 48 anos menos dois meses, para sermos precisos. Até ao dia em que o jornal República, de Raul Rego, proclamou a toda a largura da primeira página: Este jornal não foi visado por qualquer Comissão de Censura. Agora era a revolução que saía à rua, vivia-se o 25 de Abril de 1974.

Aquela censura nem mesmo tinha sido objecto de proclamação, lei ou decreto. Aparece numa nota da Polícia Cívica, enviada às redacções naquele dia 22 de Junho de 1926, em pleno período de agitação e ajustamento nas fileiras dos golpistas. “Os triunfadores do 28 de Maio não suportam a crítica nem mesmo o esvoaçar leve de uma ironia” – queixava-se o Diário de Lisboa, de Joaquim Manso, no “ultimo dia” de liberdade, a 23 de Junho de 1926.

Dias antes, a 16 de Junho, fora eliminado do processo o comandante Mendes Cabeçadas, um dos heróis do 5 de Outubro, que proclamara não querer ser ditador (talvez por isso o atiraram tão cedo pela borda fora), mas ainda sobrava o general Gomes da Costa, novo Presidente do Ministério, que acabava de prometer e jurar:

– Quero governar com uma imprensa livre.

De facto aquele chefe militar até não se privara de enaltecer a Imprensa que “preparou a atmosfera que tornou possível o 28 de Maio”. A Imprensa que tomou a posição de mais perigo na barricada contra um estado de cousas que reclamava cirurgia urgente... – alegava, em desespero, o Diário de Lisboa. Tarde demais.

De facto a Imprensa tinha andado a brincar com o fogo e agora apelava à “paternal autoridade” do general golpista, que nos primeiros dias de Julho, aliás, faz sair uma Lei de Imprensa prometendo liberdade, teoricamente aceitável. Em vão.

Queimou-se ele também, aprendiz de feiticeiro. Quinze dias depois: O general Gomes da Costa/ foi afastado da Presidência do Ministério/ tendo-se organisado um novo governo/ sob a chefia do general Carmona – anuncia o mesmo “Diário de Lisboa” a toda a largura das suas páginas centrais, em 9 de Julho de 1926.

Consumava-se a ditadura, com a censura à Imprensa, a exemplo do que então acontecia na Itália de Mussolini e na Espanha de Primo de Rivera (foi um dos argumentos “internacionalistas” invocados).

Os primeiros carimbos da censura, com os dizeres Este número foi visado pela/ Comissão de Censura, apareceram nas primeiras páginas dos jornais a 24 de Junho de 1926, dia de S. João, Perante a resignação geral: O povo dansou, cantou, deitou-se tarde, divertiu-se, indiferente – escreve Norberto Araújo, no D.L..

Mal sabia, o Povo. A censura precedia a PEVIDE, a PIDE, a DGS, as prisões, os Tribunais Plenários, as torturas, as eleições aldrabadas, com os jornais sempre obrigados a tapar os buracos da censura para não se saber (com os piupius, que logo inventou o “Sempre Fixe” para informar que a censura tinha passado por ali). Iria estender-se aos espectáculos e aos livros por vezes de maneira brutal. Conta José Brandâo, no seu estudo sobre Os livros e a Censura em Portugal:

De uma só vez, a editora Europa-América teve 73 mil livros apreendidos e 23 títulos proibidos. A “caça” começou no dia 14 de Junho de 1965. Durante quatro dias deram volta a tudo. Regressaram no dia 23. Agora com carros que cercaram todo o edifício de Mem Martins e levaram toda aquela quantidade de livros. Em dinheiro da altura, o prejuízo andou pelo menos na ordem dos 700 contos. Para a grande maioria dos editores portugueses, nesse tempo, tal situação era a ruína completa.


Nesse mesmo ano, e na sequência da atribuição do «Prémio Camilo Castelo Branco» ao escritor angolano Luandino Vieira, a cumprir uma pena de 14 anos de prisão sob a acusação de terrorismo, a Sociedade Portuguesa de Escritores vê a sua sede, em Lisboa, feita em fanicos por obra de um bando de legionários e agentes da polícia política, acabando por vir a ser extinta por despacho do ministro da Educação Nacional.


:O zelo dos coronéis da censura, directamente dependentes da Presidência do Conselho, como a PIDE, havia de atingir rrevolucionários tão perigosos como

Fernando Namora, a quem cortaram um artigo para Jornal do Médico, de 3 de Set. de 1960. Veja aqui as provas tipográficas do corte integral, com dois carimbos a vermelho da Comissão de Censura do Porto e a data de entrada «23 Ago. 1960». Tratava-se de um texto de homenagem à memória de Jaime Cortesão, falecido a 14 de Agosto de 1960, poucos meses depois de ter sido preso e muito maltratado, aos 73 anos, nos meses que se seguiram à campnha de Humberto Delgado..


Vergílio Ferreira, a quem proibiram em 1953 o romance «Cavalo Degolado», mais tarde autorizado sob o título «Manhã Submersa», Veja aqui o ofício da Direcção dos Serviços de Censura, assinado pelo secretário António Santana Crato. — 1953 Maio 29.


São alguns dos documentos da recente exposição As Mãos da Escrita na Biblioteca Nacional, que vale a pena ver.

Mas o melhor, online, sobre a história da censura, de 1926 a 1974, em Portugal é a Galeria Virtual da Censura.

Fica com uma boa ideia de como funcionou a censura de 24 de Junho de 1926 a 24 de Abril de 1974. Inclusive.

José Teles

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