segunda-feira, 23 de abril de 2007

Visita à sede da PIDE no Porto


Conforme anunciado, decorreu, no passado dia 21, a visita à ex-sede da PIDE-DGS no Porto.

Joana Soares, jornalista do Primeiro de Janeiro, faz, na edição de hoje do Jornal, o relato do que lá se passou. A foto é de José Freitas.

Encontro dos que foram perseguidos pelo Estado Novo

“Não esteve no 25 de Abril? Nem sabe o que perdeu”

Opositores do fascismo salazarista. Ícones da liberdade. Abusaram da liberdade que havia no período que antecedeu o 25 de Abril. Estiveram em cativeiro, apanharam sovas da PIDE, e as marcas que carregam não transpiram um pingo de arrependimento. Pensaram-se loucos quando a liberdade lhes entrou pela rede da cela, nas instalações da ex-PIDE, no presente Museu Militar do Porto. Por favor, “não apaguem a memória”.

“Estou louco”. Estava no ano de 1974, do dia 24 de Abril deitado na cama, num quarto escuro, do estabelecimento da PIDE/DGS - Polícia Internacional e Defesa do Estado/ Direcção-Geral de Segurança na delegação do Porto, onde agora mora o Museu Militar.
Lá fora corriam palavras que não correspondiam à sua realidade. No seu entender aquela gente estava louca ou ele próprio, Jorge Carvalho, cognome «Pisco», 60 anos, “de tanto ter levado”, estava louco. “Morte à PIDE e seus apoiantes”, ouve Pisco, a tentar imaginar o que não podia ver. “Não pode ser”, exclamou para si mesmo. “Não percebia aqueles cantares. No recreio percebia que gente corria de lá p’ra cá”, Pisco dizia recorrendo aos retalhos de sua memória. “Há noite havia um cheiro a queimada” - quando não se pode ver, todos os outros sentidos ficam mais apurados. “Diziam-nos são manifestações, são flores queimadas”, tentavam enganar os sentidos de Pisco. Mas Pisco notava “à medida que avançava a noite e que o barulho” ecoava mais ferozmente pelo quarto que não era nada disso. “Foi o golpe de Spínola”, desvendou-se por fim. Depois viu-se “andar solto” pelo edifício “e ver pides”. Pisco chega, enfim, à varanda da sede da PIDE/DGS no Porto, e dali observou a Revolução dos Cravos, do povo, do 25 de Abril. E observou-se a ele mesmo: o último preso da PIDE no Porto. “Não esteve no 25 de Abril? Nem sabe o que perdeu”, jubilava Jorge Pisco. Estende-se na varanda do museu e recorda: “Foi daqui que vi os pides passar”. “Vi a Virgínia Moura [militante do Partido Comunista Português - PCP] a ser abraçada pelo advogado Arnaldo Mesquita, com tanta força que ela até caiu cheia de dores”, lembra Pisco incentivando uma gargalhada na sala do Museu Militar, onde se encontraram ex-presos, sejam políticos ou não, para trazerem ao presente a sua história passada.
No limiar do seu discurso, Jorge Pisco incita: “Isto [Museu Militar] devia ser Museu da Resistência já há muito tempo, e espaço de memória”.

“Não apaguem a memória”
Memória. A História tem que ver com esta palavra. Desfazer lugares é maquilhar a História. Perder a memória e perder traços do passado. Para “não apagar a memória”, como incentivou o coronel Manuel Pereira de Carvalho, responsável pelo actual Museu Militar. “Há factos que se podem apagar da memória”, preocupava-se o director do Museu, onde funcionou a PIDE. “Não apaguem a memória”, sublinhava o coronel, remetendo o recado para a juventude que vai percebendo menos e menos. “É preciso dizer sempre à juventude o que foi isto”, exortava. Enfim, “é preciso” continuar a “barafustar”. Para a memória ter o lugar dela - na lembrança, não no esquecimento. E, por isso, já está erigido o Movimento Cívico «Não apaguem a memória». Mas mesmo antes de falar sobre o movimento cívico, Manuel Pereira de Carvalho repetiu o trilho que aguardava a visita anual de todos aqueles que o conhecem de cor e salteado. “Começamos no rés-do-chão onde se resguardavam os presos, após o interrogatório, depois vamos visitar os gabinetes, onde funcionavam as enfermarias, e por fim vamos aos armazéns, onde eram as celas comuns”, explicava a agenda para a tarde, dando conta que este último espaço está decrépito e qualquer dia vai mesmo “cair”. “Às vezes não existe dinheiro para determinadas situações”, lastimou. E, por isso, “a memória vai ser mesmo apagada para sempre”. A assistência familiarizada com o local ansiava por aquele momento.
“Ainda tem a palavra PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa pelo Estado)? - perguntava um elemento do conjunto de visitantes. “Tem, tem” - ironizava o coronel, completando que “três ex-directores tentaram pintar a parede, mas é impossível aquela tinta continua ali”. Ou seja, a parede alinha com o recente movimento cívico - “não apaguem a memória”.

“As reuniões faziam-se como piqueniques”
Maria José Ribeiro é militante do PCP, e isto foi o passaporte para ser das primeiras e poucas mulheres, na altura do Estado Novo, a ser presa pela PIDE, torturada psicologicamente, com apenas 23 anos. Dos 23 anos aos 30, viveu assim - a ser torturada pela PIDE. Era considerada, então, “perigosa”. Não lhe falta uma vírgula para descrever os tempos “de malvadez” por que passou ao enfrentar o fascismo. E mesmo sentada no lugar, onde outrora foi maltratada, não lhe sobressaí pinta de arrependimento. Esta palavra não existe em nenhuma cara.
“Não estou comovida. Olho em redor e não reconheço este espaço”, atira Maria José, contrapondo que “a memória fica sempre, não se apaga assim”.
“Tenho 71 anos, e aos 23 vim para aqui pela primeira vez”, assim começou a ex-presa pela PIDE a sua história de vida. A sala silencia até ao último som. “Na época não era normal uma rapariga fazer parte dos grupos, e muito menos apanhadas pela PIDE”, diz. “As reuniões faziam-se como piqueniques”, conta Maria José, dando conta que inicialmente passava despercebido, mas depressa a PIDE alastrava o seu faro, ou então os “bufas” alastravam a sua boca, até à PIDE. “A PIDE detectava, torturava e prendia”. Estas palavras ganham outros contornos quando os espaços de tortura e prisão são (re)visitados. “Aqui são as salas onde a PIDE fazia os interrogatórios, e os outros presos esperavam à medida que ouviam os seus gritos”, comentava um visitante, a acompanhar os amigos ex-presos e ex-torturados pelo regime do Estado Novo.
Mas, naquela altura, Maria José não percebia o teor da prisão. A juventude não deixava. “Era natural conversar, porquê prender”, questionava. A ex-perseguida pelo fascismo português decidiu, “no meio de tantas detenções e perseguições”, não casar. “Tanta gente a ser presa, podia acontecer-me a mim”, reflectiu na altura. Mais tarde, decidiu levar avante a sua decisão - foi feliz durante 15 dias, porque a PIDE bateu-lhe à porta passados 15 dias de casar. “Uma malvadez”, repetia incansável Maria José. “Diziam que o casamento não ia sobreviver, a mim e ao meu marido”. “Uma tortura”. “Mas havia mais, muito mais e pior”, agudizava. Maria José falava em sustenido maior. A cada passo de avanço de cada palavra e a história agudizava, aumentava o volume, transpirava em dó maior - como numa orquestra.
“Numa manifestação, onde se queria tudo o que não se podia ter - a emancipação da mulher, a descolonização - senti uma mão nas minhas costas - era o meu pai”, relembra Maria José, “depois corremos os dois a rua 31 de Janeiro e ai, quando parámos, senti uma mão pesada”. “Fomos ambos levados”, reporta-se àquele tempo. Os pides afirmavam, parafraseados por Maria José, “são eles os cabecilhas”. “Uma pancadaria daquelas. De esquecer. Até insultos”, espelhava entre pausas. “Eu fiquei de joelhos, não podia levantar-me. O meu pai partiu a cabeça”, transpareceu. “Uma malvadez”.

Não sabe andar de bicicleta?
José Castro, deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal do Porto, recorda-se do “parlatório”, onde “os presos podiam ver os familiares e amigos, mas num espaço pequeno e através de uma rede”. “Quando aqui chegávamos tiravam-nos os cordões dos sapatos, o relógio e até os óculos. Ficávamos despojados dos nossos objectos”, conta Castro. O acto não é inocente, continua o deputado, “atribuía mais fragilidade ao preso”. “Estive aqui entre 6 a 20 de Abril de 1973, num período mais decente”, apelava à memória José Castro, para depois remeter para a razão que lhe serviu de bilhete para lhe bater à porta a PIDE. “Ocorreu uma acção de sabotagem aquando a candidatura de António Cruz para a direcção da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Fui chamado por causa disto”, partilhou, acabando por anunciar que “não houve explicação para a minha saída”. “No dia seguinte disseram que por ser Páscoa, poderia sair para estar com família”, citou a PIDE na altura.
Jorge Carvalho, de cognome «Pisco» revivia o edifício e a vida antes do 25 de Abril a cada cela e departamento cruzado. “Aqui era a enfermaria [hoje são os escritórios] onde o patife do Campilho, o médico, encharcou-me de álcool, depois de ter apanhado da PIDE”, agravou a voz e deplorou: “Ainda por cima quando me viu esmurrado perguntou-me se não sabia andar de bicicleta”. Mas quem Pisco não suportava era o «pide da brilhantina», como lhe chamavam: “Com ele ficávamos dois dias, dias, de estátua”. “Almoçávamos de pé, de frente para a parede, não nos podíamos mexer e se o fizéssemos, o que acabávamos sempre por o fazer, apanhávamos nas costas”, lembrava Jorge, o Pisco. Mas havia um que era mais benevolente. “Havia uns que a PIDE era um trabalho e que não nos faziam nada”. Mas pior do que a tortura da estátua, era mesmo a tortura do sono: “Adormecíamos, vinham, acordavam-nos para subir e descer as escadas, voltávamos para dormir, éramos novamente acordados, subíamos e descíamos as escadas”.
O director do Museu, reportava-se àquele lugar, o dos tempos da PIDE, como “sinistro”. “O antigo embaixador José Augusto Seabra conseguiu ludibriar a PIDE”, exortava Manuel Pereira de Carvalho. “Enviou um recado à mãe, que lhe trazia a alimentação, dentro da garrafa vazia do vinho a dizer, ajuda-me”, contava a história aos ex-presos, que davam sinal de confirmação com a cabeça. “Sim, porque a PIDE expressava sempre que não havia tortura”, lembrou. A PIDE negava os feitos, e “metia os bufas” nas celas juntamente com os outros presos para ver se caçava alguma coisa. Jorge Pisco apanhou dois: “Eu tinha metido um papel debaixo do bolo que veio dividido para comermos. Acabei por comer o papel para não ser apanhado”. “Quem foi?” vociferava Pisco. “Foram os dois bufas”, respondeu. O essencial ficou sublinhado, “não apaguem a memória”.

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