segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O arquivo da PIDE, a propósito de «A vida dos outros»

Seguindo a sugestão de um companheiro de outro blogue, fui ver o filme «A vida dos outros» («Das Leben der Anderen», Alemanha, 2006) do jovem realizador Florian Henckel von Donnersmarck sobre a Stasi – a polícia política da República Democrática Alemã – e o sistema de controlo e vigilância a que foi submetido o seu meio cultural sob o regime comunista. A acção passa-se em Berlim Leste, em três períodos distintos: 1984-85, 1989 (logo após a queda do muro de Berlim) e 1991, depois da reunificação da Alemanha. O filme coloca-nos perante várias questões: o totalitarismo, a perseguição política, os interrogatórios, a tortura, o medo, o poder discricionário, a acção policial a soldo de paixões mesquinhas, as fraquezas humanas, o suicídio, a resistência, a liberdade de expressão...
Por deformação profissional, o filme também me interessou pelo que nos transmite sobre os arquivos. «A vida dos outros» põe em evidência o duplo poder dos arquivos já teorizado, nomeadamente, por Eric Ketellar, Professor de Arquivística na Universidade de Amesterdão: "The archives have a two-fold power: being evidence of oppression and containing evidence required to gain freedom, evidence of wrong-doing and evidence for undoing the wrong" (Archival Temples, Archival Prisons: Modes of Power and Protection. Archival Science. 2:3-4 (2002), 231). Os arquivos podem ser instrumentos de hegemonia mas também de resistência; de opressão e de liberdade; de poder e de contrapoder. Os mesmos arquivos que serviram regimes autoritários ou totalitários podem servir propósitos democráticos, como sejam a reparação de injustiças e a restituição de direitos violados. Nas transições políticas para a democracia, os arquivos jogam um papel decisivo: conservam, tratam e comunicam a prova documental das acções (arbitrárias) do passado e conservam, tratam e comunicam a prova documental de acções (escrutináveis) do presente.
No filme, o dramaturgo Georg Dreyman, que durante a vigência do regime comunista foi alvo da vigilância cerrada da Stasi (escutas em todas as divisões da sua casa e observação quotidiana da sua intimidade), apenas porque o ministro da Cultura cobiçava a sua mulher, pôde, após a instauração da democracia, aceder ao arquivo produzido pela polícia secreta. Pôde ainda saber o verdadeiro nome do agente que o vigiava e elaborava os relatórios diários da sua vida privada: Hauptmann Gerd Wiesler, com o n.º de código HGW XX/7.
Na Alemanha, ao invés do que acontece em Portugal, as vítimas da polícia política têm o direito de conhecer a identidade dos agentes policiais e dos informadores que as espiaram ou denunciaram. Após a reunificação alemã, o arquivo da Stasi transformou-se num instrumento de ressarcimento das vítimas e de reposição da verdade.
A jovem democracia portuguesa decidiu que o acesso público ao arquivo da PIDE/DGS não devia incluir o conhecimento da identidade dos agentes e informadores da polícia política. O nome dos agentes da PIDE e qualquer elemento que os possa identificar são expurgados dos processos que vão à consulta na Torre do Tombo (seguindo-se uma interpretação questionável da alínea 2 do art.º 17 do regime geral dos arquivos – decreto-lei n.º 16/93, de 23 de Janeiro). Considero que assim o arquivo da PIDE/DGS continua a não cumprir integralmente os propósitos que os arquivos de instituições autoritárias ou totalitárias devem cumprir, após transições democráticas. Afinal, a dificuldade em lidar com a verdade histórica e o conformismo de muitos continua a tolher-nos a acção e a perturbar o discernimento colectivo.

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