A publicação de dois relatórios militares secretos acerca da guerra colonial no Boletim Anti-Colonial (BAC) é uma das acções de maior impacto em que participa o sector oposicionista do Estado Novo de formação católica. O BAC é um periódico clandestino criado em 1972, que pretende contribuir para «uma acção imediata, persistente e organização» contra a guerra colonial. O grupo que o edita forma-se dois anos antes, tendo publicado duas séries de textos anti-coloniais: uma temática (ao todo sete «cadernos» com uma tiragem de mil exemplares) e uma periódica (nove números). Um dos centros nevrálgicos da actividade é um centro de documentação instalado em dois quartos alugados na rua António Taborda.
Integram o «núcleo duro» do grupo Nuno Teotónio Pereira, dedicando-se à recolha de informação; Manuel Alves, economista, responsável pelo ficheiro bibliográfico; Pedro Soares Onofre, encarregado da distribuição das publicações; Luís Moita que redige e selecciona textos. Através deste último elemento, um ex-padre, o grupo estabelece contactos e intercâmbios de informação com a Comissão Pontifícia Justiça e Paz; o IDOC – Centro de Documentação e Informação internacional; e o cónego François Houtart, professor da Universidade Católica de Lovaina e director de um centro de documentação relativo aos problemas do «terceiro mundo». Outras pessoas colaboram pontualmente com o grupo: Maria Gabriela Ferreira, José Dias, Francisco Solano de Almeida, Fernando Abreu, Maria Luísa Sarsfield Cabral e o Pe. José de Sousa Monteiro. Este último é um jesuíta que trabalha próximo do arquivo, na sede da Brotéria, e fornece alguns documentos, que recebe do estrangeiro. O grupo BAC mantém relações informais com a LUAR e a FPLN, a qual integra a BR. A partir de Setembro de 1973, a FPLN é reestruturada e adopta o nome de PRP, mas a organização responsável pela luta armada, BR (Brigadas Revolucionárias), conservam o nome.
Em 1972 dois elementos deste grupo, Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita, assinam A situação política portuguesa – o fracasso do reformismo. É um diagnóstico do fracasso da «primavera marcelista», em cuja lista de signatários se encontram comunistas, socialistas e católicos. Apesar do grupo ligado ao BAC nunca ter apostado numa reforma do regime «por dentro», ao contrário de outros opositores católicos com quem se encontravam em sintonia nos anos finais do salazarismo, assume a radicalização da luta anti-colonial como a única atitude coerente face aos impasses da guerra e da ditadura. É neste contexto que são divulgados dois relatórios militares secretos no BAC: o Relatório Anual de Informações do Comando Chefe das Forças Armadas, em Angola (Quartel General – 2.ª Repartição), de 1970, e o Breves considerações sobre alguns aspectos focados no Plano de Contra-Subversão, elaborado, em 1969, pela Direcção dos Serviços de Centralização e Coordenação das Informações de Angola (SCCIA).
Nuno Bragança (na foto), que trabalhava no Ministério dos Negócios Estrangeiros, é um elemento-chave da operação, ficcionalizada no romance Square Tolstoi (1981). É um livro precioso, quer como obra literária, quer como documento do imaginário de um opositor do Estado Novo com referências culturais, religiosas, políticas e sociais bem diferentes das que Manuel Tiago exprime nos seus romances e novelas. Aqui fica um excerto:
«Desde quando é que tu estendes a mão esquerda aos amigos por causa de uma pasta como nunca te vi usar, nem trazias à chegada?»
«A mão esquerda?»
«Ao teu técnico de som»
Fiquei calado. Depois sorri-lhe:
«Pazinha, então se queres ser uma menina muito boa, fica a ver-me embarcar depois não deixes de olhar para o avião. Se antes dele levantar for lá um automóvel, telefona para este número» - dei-lhe o número e o nome do Hugo. «Ele conhece toda a gente que conhece toda a gente que deve ser alertada se eu for dentro.»
Deixei cair o saco e a pasta (mas encostei a perna e esta). Agarrei a Marta e dei-lhe um beijo a sério.
Quando a soltei, ela assoprou. «São Sifrónio», disse. «Ele descobriu.»
«Descobri o quê?»
«Que ainda não tinhas feito isso hoje.» Baixou-se, pegou na pasta e no saco e entregou-mos.
«Vai, pazinho. Se não tiver havido denúncia não há problema. Eles não te vão abrir os envelopes.»
«Eh, os envelopes. Sabes o que é que está em cada um? Uma colecção de palas de pirata para o olho. Até já, o povo agradece-te.»
Segui até ter ultrapassado a Polícia sem problema outro que o de não sorrir quando eles me abriram a pasta a voltaram a fechá-la com indiferença sonolenta. Então virei-me para a Marta, levantei o braço esquerdo em adeus e tapei o olho direito com dois dedos. Depois mandei-lhe um beijo com ambas as mãos. Ela, de longe, fez-me cornichos.»
Nuno Bragança, Square Tolstoi, Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, pp. 92-93
Integram o «núcleo duro» do grupo Nuno Teotónio Pereira, dedicando-se à recolha de informação; Manuel Alves, economista, responsável pelo ficheiro bibliográfico; Pedro Soares Onofre, encarregado da distribuição das publicações; Luís Moita que redige e selecciona textos. Através deste último elemento, um ex-padre, o grupo estabelece contactos e intercâmbios de informação com a Comissão Pontifícia Justiça e Paz; o IDOC – Centro de Documentação e Informação internacional; e o cónego François Houtart, professor da Universidade Católica de Lovaina e director de um centro de documentação relativo aos problemas do «terceiro mundo». Outras pessoas colaboram pontualmente com o grupo: Maria Gabriela Ferreira, José Dias, Francisco Solano de Almeida, Fernando Abreu, Maria Luísa Sarsfield Cabral e o Pe. José de Sousa Monteiro. Este último é um jesuíta que trabalha próximo do arquivo, na sede da Brotéria, e fornece alguns documentos, que recebe do estrangeiro. O grupo BAC mantém relações informais com a LUAR e a FPLN, a qual integra a BR. A partir de Setembro de 1973, a FPLN é reestruturada e adopta o nome de PRP, mas a organização responsável pela luta armada, BR (Brigadas Revolucionárias), conservam o nome.
Em 1972 dois elementos deste grupo, Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita, assinam A situação política portuguesa – o fracasso do reformismo. É um diagnóstico do fracasso da «primavera marcelista», em cuja lista de signatários se encontram comunistas, socialistas e católicos. Apesar do grupo ligado ao BAC nunca ter apostado numa reforma do regime «por dentro», ao contrário de outros opositores católicos com quem se encontravam em sintonia nos anos finais do salazarismo, assume a radicalização da luta anti-colonial como a única atitude coerente face aos impasses da guerra e da ditadura. É neste contexto que são divulgados dois relatórios militares secretos no BAC: o Relatório Anual de Informações do Comando Chefe das Forças Armadas, em Angola (Quartel General – 2.ª Repartição), de 1970, e o Breves considerações sobre alguns aspectos focados no Plano de Contra-Subversão, elaborado, em 1969, pela Direcção dos Serviços de Centralização e Coordenação das Informações de Angola (SCCIA).
Nuno Bragança (na foto), que trabalhava no Ministério dos Negócios Estrangeiros, é um elemento-chave da operação, ficcionalizada no romance Square Tolstoi (1981). É um livro precioso, quer como obra literária, quer como documento do imaginário de um opositor do Estado Novo com referências culturais, religiosas, políticas e sociais bem diferentes das que Manuel Tiago exprime nos seus romances e novelas. Aqui fica um excerto:
«Desde quando é que tu estendes a mão esquerda aos amigos por causa de uma pasta como nunca te vi usar, nem trazias à chegada?»
«A mão esquerda?»
«Ao teu técnico de som»
Fiquei calado. Depois sorri-lhe:
«Pazinha, então se queres ser uma menina muito boa, fica a ver-me embarcar depois não deixes de olhar para o avião. Se antes dele levantar for lá um automóvel, telefona para este número» - dei-lhe o número e o nome do Hugo. «Ele conhece toda a gente que conhece toda a gente que deve ser alertada se eu for dentro.»
Deixei cair o saco e a pasta (mas encostei a perna e esta). Agarrei a Marta e dei-lhe um beijo a sério.
Quando a soltei, ela assoprou. «São Sifrónio», disse. «Ele descobriu.»
«Descobri o quê?»
«Que ainda não tinhas feito isso hoje.» Baixou-se, pegou na pasta e no saco e entregou-mos.
«Vai, pazinho. Se não tiver havido denúncia não há problema. Eles não te vão abrir os envelopes.»
«Eh, os envelopes. Sabes o que é que está em cada um? Uma colecção de palas de pirata para o olho. Até já, o povo agradece-te.»
Segui até ter ultrapassado a Polícia sem problema outro que o de não sorrir quando eles me abriram a pasta a voltaram a fechá-la com indiferença sonolenta. Então virei-me para a Marta, levantei o braço esquerdo em adeus e tapei o olho direito com dois dedos. Depois mandei-lhe um beijo com ambas as mãos. Ela, de longe, fez-me cornichos.»
Nuno Bragança, Square Tolstoi, Lisboa, Assírio & Alvim, 1981, pp. 92-93
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