domingo, 24 de dezembro de 2006

Emídio Santana, o anarquista da Lisboa operária

Ainda em maré de centenários deve evocar-se o anarquista Emídio Santana (1906-1988), apesar do involuntário desfazamento temporal (nasceu no estival mês de Julho).
Santana formou-se na mundividência operária primonovecentista da capital, o mesmo é dizer, nos centros operários e na rua: "A rua era o grande palco da vida quotidiana [...] Todos se conheciam, todos comunicavam; sabia-se quem era republicano, socialista ou sindicalista e era na rua que muita vez se discutiam os acontecimentos políticos, as greves ou outros casos" (in Memórias.., 1985). Estudou na Escola-Oficina n.º 1, espaço escolar de referência do ensino filantrópico e progressista. Começou a trabalhar aos 14 anos, como aprendiz de carpinteiro de moldes, depois desenhador. Adere então ao Sindicato Único das Classes Metalúrgicas, filiado na CGT anarquista lusa (e do qual será sec.º-geral em 1925). Segue-se o ingresso nas Juventudes Sindicalistas, em 1924, de que será tb. sec.º-geral. Por estas actividades é eleito para o Conselho Confederal da CGT (1927). Paralelamente, participará em várias iniciativas de movimentos culturais progressistas e do associativismo livre, como a Universidade Popular Portuguesa (1930), o Ateneu Cooperativo (1954), a Associação dos Inquilinos Lisbonenses (1964-5) e a DECO- Assoc. Portuguesa para a Defesa do Consumidor (integra o núcleo fundador formado em Fev.º 1974).
Após o golpe de 28/V/1926 será várias vezes encarcerado por actividades sindicalistas e políticas: em 1927, em 1932/3 e em 1937. Desta última vez ficará preso até 1953, por participação na tentativa de atentado bombista contra Salazar. A justificação mais premente era o apoio do ditador à agressão franquista; como o próprio assumiria: "se Salazar se sentia autorizado a comprometer o país no conflito espanhol, nós, cidadãos portugueses, na legitimidade dos nossos direitos, tínhamos o dever de opor-nos à vilania da agressão e preferimos a lealdade e a solidariedade" (in Memórias.., 1985).
Sempre que é libertado retoma a militância antifascista e libertária. Reorganiza o movimento anarquista, relança o seu jornal mais influente, A Batalha (em 1934-5, 1968 e 1974), e participa em iniciativas oposicionistas numa postura frentista. Em 1961 envolve-se na revolta da Sé, novamente para derrubar Salazar.
Em 1978, co-fundou o Centro de Estudos Libertários e o Arquivo Histórico-Social (depois doado à Biblioteca Nacional, onde permance).
Da sua obra, destaca-se a introdução e nota biográfica a O sindicalismo em Portugal (de Manuel Joaquim de Sousa, 1972); História de um atentado (1975); O 18 de Janeiro de 1934 (1978); Memórias de um militante anarco-sindicalista (1985); e Onde o homem acaba e a maldição começa (1989, obra póstuma de relato da experiência prisional).
Fontes: «Recordando Emídio Santana», por Luís Garcia e Silva (2006); «Um militante corajoso», por Jorge Costa (2006); «Como conheci Emídio Santana», por Fernando J. Almeida (2006); «O anarquista que tentou matar Salazar era um homem que ria muito», por Carlos Pessoa (Público, 24/XII/2006, p.48-52 Pública). Sobre o anarquismo luso vd. «O anarquismo na História de Portugal» e «História do movimento anarquista em Portugal».

sábado, 23 de dezembro de 2006

Processos do Tribunal Plenário de Lisboa: uma fonte por investigar

Actualmente ainda não dispomos de estudos aprofundados sobre a história dos tribunais plenários, do ponto de vista jurídico, político e social. No entanto, há fontes disponíveis para o efeito. Além dos depoimentos orais de antigos presos políticos, advogados de defesa e outros agentes judiciários ainda vivos, e dos testemunhos escritos que têm sido publicados, os investigadores interessados também poderão consultar os processos do tribunal plenário de Lisboa que funcionou no Tribunal da Boa-Hora, entre 1945 e 1974.
Em Agosto de 1993, foram elaboradas as guias de remessa do 1.º, 2.º e 3.º Juízos Criminais do Tribunal da Boa-Hora que seriam incorporados no Arquivo Distrital de Lisboa, na Torre do Tombo. Desse ingresso fazem parte os processos do Tribunal Plenário de Lisboa, de 1945 até 1969 (os processos posteriores não terão ingressado naquela ocasião). Através desses instrumentos de pesquisa, é possível encontrar referência aos processos movidos aos presos políticos, quer por n.º de processo/ano quer pelo nome do réu.
Apesar das limitações à comunicação de documentos judiciais impostas pelo regime geral dos arquivos (artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 16/93 de 23 de Janeiro), é possível consultar esta valiosa fonte para a história da repressão política durante o Estado Novo e da resistência antifascista, com o consentimento dos antigos presos políticos ou das suas famílias (quando já desaparecidos) ou 50 anos após a sua morte.
Nb: a historiadora e activista do Movimento Irene Pimentel escreveu um texto de síntese sobre o tema (vd. aqui).

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo

fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais

países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo

tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo

quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Alexandre O’Neill, No reino da Dinamarca, 1958.

Para que o medo não volte a ter tudo!*

No passado dia 6 de Dezembro, realizou-se no Tribunal da Boa-Hora uma cerimónia evocativa do tribunal plenário que ali funcionou entre 1945 e 1974 (+inf. aqui). Na ocasião, Edmundo Pedro e Nuno Teotónio Pereira descerraram uma placa que assinala a memória daquele lugar. Estiveram presentes o presidente do Tribunal Constitucional, o vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dois deputados à Assembleia da República, o ministro da Justiça, a directora-geral da Administração da Justiça, antigos presos políticos, advogados de defesa dos presos políticos, outros resistentes contra o Estado Novo e activistas do movimento Não apaguem a memória!.
Na cerimónia, apresentada por Martins Guerreiro, discursaram o Prof. António Borges Coelho (na qualidade de ex-preso político, vd. texto aqui), o juiz Manuel Macaísta Malheiros (na qualidade de advogado de defesa de presos políticos), a directora-geral da Administração da Justiça e a representante do movimento Não Apaguem a Memória!, cujo discurso aqui se reproduz.
Começo por recordar um texto de José Régio proferido no âmbito da Campanha Eleitoral da Oposição, em 1949:
"Na luta que actualmente se trava em Portugal entre duas formas de pensar e sentir, de governar e de ser – um poderoso elemento há com que jogam os nossos antagonistas: o medo. «O medo é que guarda a vinha» - diz-se. Em grande parte, tem sido o medo que tem guardado a actual Situação. Pode, ainda, ser o medo quem melhor a defenda. Não só em Portugal como em quaisquer países onde um regime conquistou o poder pela força, e pela força impera, esse poderoso inimigo da alma se agigantou a ponto de tapar todo o horizonte.
Inimigo da alma, digo: Porque é o medo que tolhe até os impulsos mais generosos, faz desistir até das aspirações mais justas, afoga até o grito mais espontâneo e, em suma, corrompe e assombra até a mais clara visão da vida. Pelo medo fica a alma pequenina, embaraçada, inerme, torpe. Encolheu-se – dizemos nós de quem teve medo de agir. E não há imagem mais justa. Não admira que cultivem o medo […] todos os regimes autoritários; todos os governos dum partido exclusivo” (CAMPANHA ELEITORAL DA OPOSIÇÃO, Depoimento contra depoimento, 1949, Lisboa, Edição dos Serviços Centrais da Candidatura, p. 58-59).
As palavras de Régio, particularmente lúcidas e incisivas, são uma clara denúncia do império entorpecedor e desmoralizador do medo que dominou Portugal durante 48 anos. De facto, a longevidade do regime teve muito a ver com a sua natureza profundamente opressiva e obscurantista.
O movimento Não Apaguem a Memória! é um movimento cívico que pugna pela salvaguarda da memória da resistência à Ditadura Militar e ao Estado Novo, para que seja dignificada a luta pela liberdade e pela democracia. O Movimento foi criado na sequência de um protesto cívico realizada a 5 de Outubro de 2005, por um grupo de cidadãos livres e independentes, que quis expressar o seu desagrado pela transformação da sede da PIDE (na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa), num condomínio fechado. No próximo dia 11 de Dezembro, serão julgados no 6.º juízo criminal de Lisboa dois companheiros do Movimento: o «capitão de Abril» Duran Clemente e João Almeida, acusados de «desobediência qualificada», por terem integrado aquele acto de cidadania. Todos os que reivindicamos o direito e o dever de lembrar sentimo-nos igualmente arguidos naquele processo.
Desde que há um ano se formou, o Movimento tem vindo a contactar com os poderes públicos (a Câmara Municipal de Lisboa, os grupos parlamentares, diversos ministérios, etc.), para que se preserve, investigue e divulgue a memória da luta contra o fascismo e o colonialismo, nomeadamente através da dignificação de locais simbólicos da repressão, como sejam a cadeia do Aljube, o Forte de Peniche, o Forte de Caxias, a sede da PIDE/DGS e as suas delegações do Porto e Coimbra, a Prisão de Angra do Heroísmo, o Campo de Concentração do Tarrafal, os Presídios Militares, o Tribunal Militar, os tribunais plenários de Lisboa (Boa-Hora) e Porto (S. João Novo), a sede dos Serviços de Censura, etc. Como sustenta o historiador francês Pierre Nora, identificar e assinalar lugares de memória torna-se particularmente importante porque os meios de memória (a memória colectiva espontânea, dos que viveram os acontecimentos ou foram seus contemporâneos) irão inevitavelmente perder-se (vd. Les lieux de memoire, Paris, Gallimard, 1984).
Paralelamente aos contactos com as entidades oficiais, o Movimento tem procurado sensibilizar e mobilizar a sociedade civil para as suas causas. E está particularmente interessado em chegar às gerações mais jovens.
A cerimónia que hoje aqui nos reúne, o descerramento de uma placa que perpetua a memória deste espaço, é a primeira concretização pública dos objectivos do Movimento. Nesta sala funcionou o Tribunal Plenário de Lisboa, entre 1945 e 1974, nesta sala foram acusados e condenados por crimes políticos, portugueses que não se encolheram. Esta cerimónia reveste-se, pois, de grande significado de cidadania, solidariedade e fraternidade, tanto mais que conta com a presença não só de antigos presos políticos e de advogados de defesa do período da ditadura como de altos representantes do poder executivo, legislativo e judicial do actual regime democrático.
Todos nós os que aqui nos reunimos hoje, repudiamos a farsa jurídica encenada durante 30 anos nesta sala; todos nós repudiamos uma administração da Justiça contra o povo, em nome de interesses mesquinhos de um regime autoritário e iníquo; todos nós repudiamos a colaboração activa, com a polícia política, de juízes de nomeação governamental; todos nós repudiamos as condições preparatórias do processo judicial sob prisão e tortura; todos nós repudiamos as “medidas de segurança”, que mais não eram que um eufemismo para uma longa e arbitrária detenção dos que ousavam contestar o Estado Novo, ter ideias próprias e diferentes sobre o modelo político, económico, social e cultural do país, ultrapassar a inércia e o comodismo, quebrar o silêncio, vencer o medo; todos nós repudiamos a sistemática violação dos direitos dos cidadãos que os tribunais plenários continuaram a praticar, mesmo depois de aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem (a 10.12.1948).
Mas não basta afirmar este repúdio, não basta que os antigos presos políticos, os advogados de defesa, as autoridades judiciárias, os companheiros do Movimento tenham consciência «do rebanho perseguido pelo medo, que da vida perdeu o sentido», não basta que nós (os que viveram e os que estudaram) saibamos que houve alguns que se recusaram «a chegar a ratos» (como disse Alexandre O’Neill). É necessário mais; é necessário que esta memória seja transmitida às novas gerações e a toda a comunidade nacional, para que possa perdurar através da História.
Por isso, esta placa – estática, muda e fria, como é próprio de qualquer placa – é apenas um começo. Importa trazer a este tribunal os jovens das escolas básicas e secundárias, promover visitas de estudo, debates, trabalhos de reflexão e de pesquisa. Cabe aos ministérios da Justiça e da Educação acarinhar e desenvolver projectos educativos sobre a Justiça e o Direito antes e depois do 25 de Abril de 1974. Para que este lugar de memória possa incitar à pedagogia democrática, à produção e divulgação de visões críticas, vivas e plurais da história da ditadura – o que nos parece um imperativo cívico e ético em democracia.

Cláudia Castelo
*Alusão ao «Poema pouco original do medo», de Alexandre O’Neill, publicado no livro No reino da Dinamarca, 1958.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Ruy Luís Gomes e Fernando Lopes Graça (efemérides)

Celebram-se neste mês os centenários de nascimento dos antifascistas Ruy Luís Gomes e Fernando Lopes Graça.
O matemático Ruy Luís Gomes nasceu a 5/12/1905 e teve direito a uma prenda apropriada: um blogue próprio, cuja visita se recomenda vivamente, dada a sua riqueza informativa. Nele se fica ainda a saber de novo blogue biográfico, dedicado ao também matemático antifascista António Aniceto Monteiro, compelido ao exílio (para o Brasil, em 1945), por perseguição salazarista (vd. aqui).
O compositor Lopes Graça nasceu a 17/12/1906 e tem direito a um variado programa cultural de homenagem: para mais informações vd. aqui. Uma biografia cuidada de Leonor Lains pode ler-se aqui; para um debate sobre o seu percurso político-cultural vd. aqui.
Nb: imagens retiradas daqui e daqui (CMC-MMPVF), respectivamente.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

A raia e o maquis

A propósito dum recente post onde dava conta dum encontro internacional sobre a raia no período ditatorial ibérico, chegou-nos nova informação de textos já publicados sobre esta temática da raia e do maquis: «La Guerra Civil española y la posguerra en el norte de Portugal» (por David Simón Lorda, de balanço dalguns estudos específicos) e «O maquis na guerra civil de Espanha: o caso do cerco a Cambedo da Raia» (de Paula Godinho, revista História, n.º 27, 1996). Nb: agradeço a Rui Ferreira a cedência destas informações.
ADENDA: aproveita-se para referir que já existem teses académicas específicas, a saber:
*CANDEIAS, Maria Fernanda Sande (1998), O Alentejo e a Guerra Civil de Espanha, vigilância e fiscalização das povoações fronteiriças, Lisboa, FLUL;
*PIRES (1997), João Carlos Salvador Urbano, A memória da Guerra Civil de Espanha no baixo alentejano raiano, Lisboa, ISCTE.

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Em resposta a Pacheco Pereira


A coluna de Pacheco Pereira do pasado dia 7 de Dezembro, publicada no Público, dedicada ao Movimento, continha algumas imprecisões e erros de facto, que Artur Pinto aqui sublinha.

Como ex-preso político julgado e condenado no Plenário de Lisboa (1965) e como apoiante do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória!, sinto a obrigação de vir a terreiro a propósito do artigo “Não apaguem a memória, mas também não lembrem só uma parte da memória”, publicado no passado dia 7 de Dezembro no jornal Público.
O artigo de Pacheco Pereira traz um importante contributo para a discussão sobre o que deve ser a memória da resistência à ditadura, designadamente quanto à sua concepção, nomeadamente para evitar a sua instrumentalização política. Carreia ainda elementos para a discussão sobre o que deve ser a vocação do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória!, se confinado a um papel meramente reivindicativo e sem forma institucionalmente estruturada ou se deve evoluir para um outro tipo de associação com personalidade jurídica e outra capacidade de diálogo, de afirmação e de intervenção quer ao nivel da sociedade, quer ao nivel dos poderes públicos. Esta é uma discussão a que o movimento não vai poder fugir e que parece começar a ganhar caminho no seio do Movimento.
O artigo prova, ainda, que os esforços desenvolvidos estão a resultar, uma vez que as acções realizadas tiveram a finalidade, entre outras, de alertar a opinião pública para o esquecimento a que foi votada a resistência ao fascismo português e a sua luta pela liberdade, a fim de que seja possível dar-lhe o lugar que por direito próprio tem na história. Sem este alerta o artigo de Pacheco Pereira não teria sido escrito, como o não teria sido o editorial de Nuno Pacheco no mesmo jornal, entre outros textos já vindos a lume.
E, no entanto, Pacheco Pereira não deixa de cair num erro de análise (por força da sua própria memória?) que importa esclarecer, de uma vez por todas. Contrariamente ao que foi o passado, mesmo recente, deste tipo de organizações, o Movimento Cívico Não Apaguem a Memória!, não sofre o controlo de qualquer partido. A sua estrutura de funcionamento é multipolar, isto é, funciona na base de grupos de trabalho independentes entre si e não há uma direcção central, e os seus membros e apoiantes são todos aqueles que estão de acordo com a sua Carta de Princípios, de que cito : o Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória!” é um movimento de âmbito nacional, democrático, plural e aberto, ao qual podem aderir todos os cidadãos que se revejam na sua natureza, princípios e objectivos.
Em todas as suas acções e em conformidade com a sua natureza, o Movimento fez sempre apelo aos cidadãos, não aos partidos. E, uma vez que Pacheco Pereira refere explicitamente o PCP, não só este não participa, como não apoia as acções. No mínimo, até este momento, tem mostrado muito pouca simpatia, como se viu na recente cerimónia no antigo Tribunal Plenário de Lisboa onde não se fez representar apesar de convidado. Mas, ressalve-se, o Movimento não é contra o PCP, nem podia ser por força do seu papel essencial na luta contra a ditadura, como não é contra nenhum outro partido. Mas também se defende que a Memória não tem dono, não é exclusivo deste ou daquele partido, desta ou daquela organização: não há propriedade privada da memória.
A ronda a todos os grupos parlamentares, teve exactamente o sentido de obter o mais amplo consenso para que o Parlamento se pronuncie favoravelmente quanto aos objectivos da Petição entregue ao presidente da Assembleia da República, nomeadamente dando passos concretos para a publicação de uma Lei da Memória. Este importante documento não se deve cingir à simples preservação e consagração dos locais da resistência e da liberdade. Entre outros aspectos, deve consagrar a constituição de um Museu Nacional da Resistência e da Liberdade onde se preservem documentos e testemunhos (um Arquivo Nacional da Resistência?) , deve apontar caminhos para que no ensino não seja descurada, às vezes mesmo maltratada, a luta pela liberdade, deve impedir que a outros locais suceda o que sucedeu à sede da PIDE.
A concluir, fazemos nossas as palavras de Gomes Canotilho, na mensagem que dirigiu ao Movimento a 6 de Dezembro, por ocasião do descerramento da lápide no Tribunal da Boa-Hora, reavivando a existência dos “tribunais plenários”, que Pacheco Pereira tão bem caracteriza na sua crónica: Não se trata, como pretendem alguns, de olhar resignadamente para o passado. Mas, perante a memória impedida, a memória interrompida, a memória manipulada, a memória apagada, é um imperativo moral e político não deixar esquecer o que não se pode nem deve esquecer. “Não deixar apagar a memória” é um grito de preocupação política e moral.
Artur Pinto

Com o Inimigo Público – sem reservas

2º dia da revista de imprensa, hoje com o Inimigo Público, semanário que tem por lema “Se não aconteceu, poderia ter acontecido”.
Pela leitura do seu último número (em data, obviamente) fez-nos saber que estabeleceu uma frutuosa parceria com o Movimento. Espera o IP que esse trabalho de equipa permita a rápida recuperação da memória de alguns dos seus mais destacados entrevistados.
Portas invoca arrependimento e Sarmento está amnésico” é o título da matéria em destaque nesta edição. Permitimo-nos divulgar em exclusivo e só para os membros do Movimento, sem receio de afrontar a inconfidência do redactor principal do IP, Mário Botequilha, qual a colaboração que nos calhou em sorte:
“Paulo Portas abriu o livro [da Carolina, obviamente], pediu o estatuto de arrependido e está disposto a colaborar com as autoridades para apurar a verdade dos factos sobre as governações de Durão Barroso e Santana Lopes. O primeiro passo foi o artigo que escreveu na ‘Tabu’ em que considerou que a Espanha é um país mais desenvolvido do que Portugal, porque teve melhores governantes, omitindo airosamente a sua responsabilidade como ministro de Estado e líder partidário à frente de O Independente, do PP e do CDS.
“No mesmo dia, Morais Sarmento deu uma entrevista à TSF/DN em que faz considerações sobre a situação política, como se não tivesse estado na origem da situação actual, como braço-direito de Durão e, logo a seguir, como faz-tudo de Santana. Segundo o seu médico, Sarmento estará a sofrer de uma amnésia grave. Tem apenas memória imediata (...)
“Em rigoroso exclusivo, o IP e o Movimento Não Apaguem a Memória!, publicam hoje as páginas esquecidas ou arrancadas dos livros das vidas de Paulo Portas e Morais Sarmento (...)”.
E prontos, quem quiser saber mais deve fazer uma assinatura anual do IP e participar em todas as iniciativas do Movimento. É a melhor garantia de não virem a sofrer um súbito apagamento da memória.
Para o nosso novo partner as maiores felicidades neste fim-de-ano e um próspero 2007 – ainda mais do que o 2006, se tal for possível. E contém connosco para vos avivar a memória!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

A morte saiu à rua num dia assim

Faz 3.ª feira 45 anos que o pintor José Dias Coelho, militante do PCP, foi assassinado pela PIDE, na Rua da Creche, em Alcântara, Lisboa. Tinha então 38 anos.
Dias Coelho aderiu, ainda adolescente, à Frente Académica Antifascista, e, já como aluno da ESBAL, fez parte do MUD Juvenil, participando em várias lutas estudantis em 1947. Naquela escola superior foi um dos dirigentes da frente pró-Associação Académica e das lutas em defesa da paz e contra a reunião da NATO em Lisboa em 1952. Em consequência disso foi expulso da ESBAL, proibido de ingressar noutra faculdade do país e demitido do lugar de professor do ensino técnico no Liceu Camões.
A rua onde foi assassinado tem hoje o seu nome. É, portanto, um lugar de memória já consagrado. Para 19 de Dez.º estão previstas cerimónias durante a tarde, incluindo o relançamento do seu livro A resistência em Portugal (pelas Edições Avante!) e a inauguração da exposição «José Dias Coelho, artista militante e militante revolucionário» (na Junta de Freguesia de Alcântara, R. dos Lusíadas, 13).
A canção de José Afonso «A morte saiu à rua» é uma homenagem a José Dias Coelho, aqui fica a sua letra:
~
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
~
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
~
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
~
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada, há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação
v
Nb: parte da inf. extraída daqui; vd. tb. estudos de Júlia Coutinho, "José Dias Coelho. Breve cronologia pessoal e afluentes" e "José Dias Coelho . A coerência do ser e do fazer"; testemunho de José Cardoso Pires aqui.

domingo, 17 de dezembro de 2006

Carta Aberta a propósito da Memória

Caro Pacheco Pereira
A sua crónica de quinta-feira passada (7/12)fez-me sorrir e pensar. Sorrir pela sua falta de argúcia. Escreve que o PCP participa e apoia as iniciativas do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória!. Mesmo sem argumentar que este é composto por cidadãos a quem não se pergunta a sua filiação partidária, é fácil perceber que ao PCP não interessaria que este movimento existisse. A razão está, inclusivé, nas suas palavras – o PCP considera como sua propriedade privada a “memória” da resistência ao Estado Novo. Ora, no desenvolvimento das suas acções, o “Não Apaguem a Memória!” vem questionar essa “propriedade privada”, o que, naturalmente, não é bem visto na Soeiro Pereira Gomes, de onde não veio participação ou apoio. Este Movimento não é uma organização satélite do PCP nem de qualquer outro partido. Se o fosse, estou certo de que eu e a maioria dos que nele participam não lhe teríamos dado o nosso empenho. Falamos com todos, mas não obedecemos a nenhum!

A questão do arquivo do PCP também me parece óbvia. Enquanto houver a possibilidade de retirar dividendos políticos do seu uso, o PCP não o abrirá a ninguém. O que do ponto de vista da propriedade, e apenas nesse, é legítimo. Continuará, assim, a haver ficções sobre “grandes antifascistas” e, em contraponto, esquecimentos éticamente censuráveis.

Não concordo consigo quando algo professoralmente recomenda a necessidade de juntarmos à “memória edificada” a “memória dos homens”. Creio que só o diz por ter da nossa actividade um conhecimento desprendido, pois desde o primeiro plenário deste Movimento que esse é um campo de trabalho que se vai explorando na medida do esforço e disponibilidade de alguns. O que acontece é que tem frutos menos visíveis e necessita de mais tempo e trabalho de outra natureza. É óbvio que a “memória edificada” necessita da “memória dos homens”, caso contrário o “edifício” perderia o sentido. Mas, Pacheco Pereira, fica aqui feito o convite para que participe connosco nesse esforço conjunto, sobretudo tendo em conta o trabalho de investigação que já fez, integrando um dos vários grupos de trabalho ou, se preferir, criando um outro que lhe pareça necessário.

Este Movimento considera que pode dar um contributo em prol da memória do que foi a resistência à ditadura no Estado Novo. E pretende fazê-lo. Mas não temos vocação monopolista nem universalista. Propomo-nos, por um lado, honrar e dignificar os que lutaram e sofreram para derrubar a ditadura e, por outro, criar as condições para preservar essa memória em defesa da democracia e da liberdade. Poderemos, com isso, vir a cair num gueto político? Não sei! Sei que temos de definir fronteiras para não nos transformarmos em lamentáveis alforrecas políticas. Sei que temos de eleger com rigor o nosso campo de acção para não corrermos o risco de nos tornarmos inconsequentes.

Some-se com o nosso o trabalho de outros, cidadãos, organizados ou não, porque o importante é que a memória exista e esteja disponível para todos, dos miúdos da escola aos “tecnocratas que nos governam”!

A propósito, na próxima segunda-feira dia 11 de Dezembro, às 14h30, vou ser julgado, juntamente com Duran Clemente, por ter organizado e participado no protesto de 5 de Outubro de 2005 na Rua António Maria Cardoso, a propósito da extinção da memória da sede da PIDE/DGS.
Apareça!

O Movimento na escrita dos colunistas

O Movimento foi assunto de notícia devido a dois acontecimentos maiores: o descerramento da lápide no Tribunal da Boa-Hora, condenando a “justiça pidesca” praticada nos “tribunais plenários (6/12/06); e o julgamento ubuesco de João Almeida e Duran Clemente, no 6º Juízo Criminal de Lisboa (11/12/06), que terá o seu desfecho no próximo dia 21, às 16h.
A actualidade pôs por isso o Movimento no centro das atenções públicas e vários colunistas comentaram, em diversos tons e sons, o que tem sido a nossa actividade e o modo como a concretizamos. Porque um deles deu azo a polémica, o de Pacheco Pereira (Público 7/12/06), recorde-se em revista o que foi o Movimento nas páginas deste jornal.
“Não apaguem a memória, mas também não lembrem só uma parte da memória” foi o título que Pacheco Pereira deu à sua crónica e que está acessível no seu blog “Abrupto” – http://abrupto.blogspot.com/. O colunista interpela o Movimento quanto à sua liberdade de acção relativamente ao PCP, enunciando uma premissa falsa e construindo, a partir daí, uma argumentação formalmente correcta, mas substancialmente errada. Escreve: “Acaso não era suposto o Movimento dizer alguma coisa sobre a política do PCP de fechar os seus arquivos e apenas divulgar documentos escolhidos a dedo para não ferir uma história tão ‘oficiosa’ como falsa? Ninguém contesta o direito legal que o PCP tem de não abrir os seus arquivos, mas talvez se deva exigir ao partido, que participa nas iniciativas do Movimento Não Apaguem a Memória! e as apoia, que se comporte de forma diferente e que não ajude a sonegar do conhecimentos de todos a parte da memória colectiva que se encontra fechada nas suas sedes (...)”.
Erro nas fontes ou debilidade na sua informação, o que vem a dar ao mesmo, Pacheco Pereira equivocou-se. Foi o que lhe disseram diversos membros do Movimento, em cartas enviadas ao Público, que há uma semana aí aguardam publicação e, por isso, entendemos poderem ser desde já aqui divulgadas.
A primeira é a de João Almeida, em forma de Carta Aberta. Seguir-se-ão as de Martins Guerreiro, Artur Pinto e de Ana Prata.

Não apaguem a memória



Cartoon de Zé Dalmeida

À morte de um canalha

Os canalhas vivem muito,
mas algum dia morrem

OBITUÁRIO COM 'HIP-URRAS'

Vamos festejá-lo
venham todos
os inocentes
os lesados
os que gritam à noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
venham todos o crápula morreu
acabou-se a alma negr
o ladrão
o suíno
acabou-se para sempre
'hip-hurra'
que venham todos vamos festejá-lo
e não-dizer
a morte
sempre apaga tudo
a tudo purifica
qualquer dia
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
'hip-hurra'
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não-chorar por vício
que chorem seus iguais
e que engulam suas lágrimas
acabou-se o monstro prócere
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
a não-ficarmos tíbios
a não-acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
e não-ficarmos frouxos
e não-esquecer que este
é um morto de merda

Mario Benedetti, poeta uruguaio, nasceu em 1920 e fez este poema às 4h da madrugada do dia em que soube que Ronal Reagan morreu. O Movimento "Não Apaguem a Memória!" considera que ele foi feito por medida para o ditador Pinochet, que a morte levou, muito atrasada, no passado 11 de Dezembro.

A raia: repressão, resistência e memória

Começou ontem o Congresso Internacional «A raia 1936-1952, repressão, resistência e memória». O evento, organizado pela Raia Viva, terá lugar em Chaves e em Cambedo da Raia e prolonga-se pelo fim-de-semana. Contará com as intervenções de Paula Godinho (sua alma mater, adivinha-se), Xerardo Pereira e William Kavanagh, entre outros, além de variadas iniciativas. O programa vem aqui (versão galega aqui). Repetirá em Ourense, em Março do próximo ano.
Nb: post primeiramente publicado aqui; a propósito deste assunto vd. post mais recente.

sábado, 16 de dezembro de 2006

Esclarecimento introdutório

O blogue do movimento cívico Não Apaguem a Memória! deixou de estar acessível aos seus colaboradores desde 7 de Dezembro passado, por razões técnicas imputáveis à empresa Blogger, ligadas à mudança para o novo sistema Beta. Porém, toda a informação do antigo blogue continua consultável.
Foi solicitado auxílio informático via informação interna e aguardámos que a própria Blogger entretanto emendasse os erros que criou. Como não havia sinal de resolução, resolveu o Grupo de Comunicação avançar com uma recriação (ainda que temporária) do blogue anterior, com o mesmo nome mais o aditamento dum 2 no final. Esta é uma prática corrente na blogosfera, daí a escolha desta solução.
Por ora, o blogue será um estaleiro. Com a colaboração de todos os que estiverem disponíveis, que nunca serão demais, esse aspecto improvisado dará gradualmente lugar a um novo edifício. As portas, essas, já estão abertas.