sábado, 23 de dezembro de 2006

Para que o medo não volte a ter tudo!*

No passado dia 6 de Dezembro, realizou-se no Tribunal da Boa-Hora uma cerimónia evocativa do tribunal plenário que ali funcionou entre 1945 e 1974 (+inf. aqui). Na ocasião, Edmundo Pedro e Nuno Teotónio Pereira descerraram uma placa que assinala a memória daquele lugar. Estiveram presentes o presidente do Tribunal Constitucional, o vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dois deputados à Assembleia da República, o ministro da Justiça, a directora-geral da Administração da Justiça, antigos presos políticos, advogados de defesa dos presos políticos, outros resistentes contra o Estado Novo e activistas do movimento Não apaguem a memória!.
Na cerimónia, apresentada por Martins Guerreiro, discursaram o Prof. António Borges Coelho (na qualidade de ex-preso político, vd. texto aqui), o juiz Manuel Macaísta Malheiros (na qualidade de advogado de defesa de presos políticos), a directora-geral da Administração da Justiça e a representante do movimento Não Apaguem a Memória!, cujo discurso aqui se reproduz.
Começo por recordar um texto de José Régio proferido no âmbito da Campanha Eleitoral da Oposição, em 1949:
"Na luta que actualmente se trava em Portugal entre duas formas de pensar e sentir, de governar e de ser – um poderoso elemento há com que jogam os nossos antagonistas: o medo. «O medo é que guarda a vinha» - diz-se. Em grande parte, tem sido o medo que tem guardado a actual Situação. Pode, ainda, ser o medo quem melhor a defenda. Não só em Portugal como em quaisquer países onde um regime conquistou o poder pela força, e pela força impera, esse poderoso inimigo da alma se agigantou a ponto de tapar todo o horizonte.
Inimigo da alma, digo: Porque é o medo que tolhe até os impulsos mais generosos, faz desistir até das aspirações mais justas, afoga até o grito mais espontâneo e, em suma, corrompe e assombra até a mais clara visão da vida. Pelo medo fica a alma pequenina, embaraçada, inerme, torpe. Encolheu-se – dizemos nós de quem teve medo de agir. E não há imagem mais justa. Não admira que cultivem o medo […] todos os regimes autoritários; todos os governos dum partido exclusivo” (CAMPANHA ELEITORAL DA OPOSIÇÃO, Depoimento contra depoimento, 1949, Lisboa, Edição dos Serviços Centrais da Candidatura, p. 58-59).
As palavras de Régio, particularmente lúcidas e incisivas, são uma clara denúncia do império entorpecedor e desmoralizador do medo que dominou Portugal durante 48 anos. De facto, a longevidade do regime teve muito a ver com a sua natureza profundamente opressiva e obscurantista.
O movimento Não Apaguem a Memória! é um movimento cívico que pugna pela salvaguarda da memória da resistência à Ditadura Militar e ao Estado Novo, para que seja dignificada a luta pela liberdade e pela democracia. O Movimento foi criado na sequência de um protesto cívico realizada a 5 de Outubro de 2005, por um grupo de cidadãos livres e independentes, que quis expressar o seu desagrado pela transformação da sede da PIDE (na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa), num condomínio fechado. No próximo dia 11 de Dezembro, serão julgados no 6.º juízo criminal de Lisboa dois companheiros do Movimento: o «capitão de Abril» Duran Clemente e João Almeida, acusados de «desobediência qualificada», por terem integrado aquele acto de cidadania. Todos os que reivindicamos o direito e o dever de lembrar sentimo-nos igualmente arguidos naquele processo.
Desde que há um ano se formou, o Movimento tem vindo a contactar com os poderes públicos (a Câmara Municipal de Lisboa, os grupos parlamentares, diversos ministérios, etc.), para que se preserve, investigue e divulgue a memória da luta contra o fascismo e o colonialismo, nomeadamente através da dignificação de locais simbólicos da repressão, como sejam a cadeia do Aljube, o Forte de Peniche, o Forte de Caxias, a sede da PIDE/DGS e as suas delegações do Porto e Coimbra, a Prisão de Angra do Heroísmo, o Campo de Concentração do Tarrafal, os Presídios Militares, o Tribunal Militar, os tribunais plenários de Lisboa (Boa-Hora) e Porto (S. João Novo), a sede dos Serviços de Censura, etc. Como sustenta o historiador francês Pierre Nora, identificar e assinalar lugares de memória torna-se particularmente importante porque os meios de memória (a memória colectiva espontânea, dos que viveram os acontecimentos ou foram seus contemporâneos) irão inevitavelmente perder-se (vd. Les lieux de memoire, Paris, Gallimard, 1984).
Paralelamente aos contactos com as entidades oficiais, o Movimento tem procurado sensibilizar e mobilizar a sociedade civil para as suas causas. E está particularmente interessado em chegar às gerações mais jovens.
A cerimónia que hoje aqui nos reúne, o descerramento de uma placa que perpetua a memória deste espaço, é a primeira concretização pública dos objectivos do Movimento. Nesta sala funcionou o Tribunal Plenário de Lisboa, entre 1945 e 1974, nesta sala foram acusados e condenados por crimes políticos, portugueses que não se encolheram. Esta cerimónia reveste-se, pois, de grande significado de cidadania, solidariedade e fraternidade, tanto mais que conta com a presença não só de antigos presos políticos e de advogados de defesa do período da ditadura como de altos representantes do poder executivo, legislativo e judicial do actual regime democrático.
Todos nós os que aqui nos reunimos hoje, repudiamos a farsa jurídica encenada durante 30 anos nesta sala; todos nós repudiamos uma administração da Justiça contra o povo, em nome de interesses mesquinhos de um regime autoritário e iníquo; todos nós repudiamos a colaboração activa, com a polícia política, de juízes de nomeação governamental; todos nós repudiamos as condições preparatórias do processo judicial sob prisão e tortura; todos nós repudiamos as “medidas de segurança”, que mais não eram que um eufemismo para uma longa e arbitrária detenção dos que ousavam contestar o Estado Novo, ter ideias próprias e diferentes sobre o modelo político, económico, social e cultural do país, ultrapassar a inércia e o comodismo, quebrar o silêncio, vencer o medo; todos nós repudiamos a sistemática violação dos direitos dos cidadãos que os tribunais plenários continuaram a praticar, mesmo depois de aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem (a 10.12.1948).
Mas não basta afirmar este repúdio, não basta que os antigos presos políticos, os advogados de defesa, as autoridades judiciárias, os companheiros do Movimento tenham consciência «do rebanho perseguido pelo medo, que da vida perdeu o sentido», não basta que nós (os que viveram e os que estudaram) saibamos que houve alguns que se recusaram «a chegar a ratos» (como disse Alexandre O’Neill). É necessário mais; é necessário que esta memória seja transmitida às novas gerações e a toda a comunidade nacional, para que possa perdurar através da História.
Por isso, esta placa – estática, muda e fria, como é próprio de qualquer placa – é apenas um começo. Importa trazer a este tribunal os jovens das escolas básicas e secundárias, promover visitas de estudo, debates, trabalhos de reflexão e de pesquisa. Cabe aos ministérios da Justiça e da Educação acarinhar e desenvolver projectos educativos sobre a Justiça e o Direito antes e depois do 25 de Abril de 1974. Para que este lugar de memória possa incitar à pedagogia democrática, à produção e divulgação de visões críticas, vivas e plurais da história da ditadura – o que nos parece um imperativo cívico e ético em democracia.

Cláudia Castelo
*Alusão ao «Poema pouco original do medo», de Alexandre O’Neill, publicado no livro No reino da Dinamarca, 1958.

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