sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Colóquio sobre o “Dever da Memória” III

Colóquio sobre o Dever da Memória

Carta a uma jovem portuguesa – revisitação

A propósito da realização do colóquio sobre o dever da memória para com a resistência antifascista, a realizar no próximo 5 de Dezembro no auditório do SPGL (18h), recuperam-se aqui algumas recordações desse tempo que caracterizam a mentalidade da época. No final propõe-se um contraste sarcástico, feito por uma mente libertária, de hoje e sempre, a propósito do que se escrevia nas revistas desse tempo e os modelos sociais que se propunham às mulheres.

No dia 19 de Abril de 1961 a Via Latina, revista da Associação Académica de Coimbra publicou uma Carta Aberta que tinha por destinatária “uma jovem portuguesa”. Era afectuosa e despreconceituosa. A revista foi objecto de uma polémica de tal modo feroz por parte dos sectores conservadores da sociedade portuguesa, com os jornais ultra-católicos Voz e Novidades a comandar as hostes, que a Via Latina foi obrigada a afastar o autor da Carta a uma Jovem Portuguesa, Marinha de Campos, para evitar o seu encerramento compulsivo pelas autoridades administrativas, por ultraje à moral pública.

O que dizia assim de tão escandaloso esta Carta? Transcrevem-se as partes principais (retiradas de Álvaro Garrido, Movimento Estudantil e Crise do Estado Novo, ed. Minerva, Coimbra, 1996):

Vou escrever para ti jovem portuguesa e particularmente para ti, jovem estudante da nossa cidade. Não tenho a fazer a apologia de qualquer tipo de ideal; ensinar-te qualquer doutrina, defender fanaticamente uma moral (…)
A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro alto e espesso, que nem tu nem eu construímos. A nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós nos favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da repressão mental (…)
Só nos é permitido atravessar o muro para escolhermos. E eu escolho-te a ti jovem portuguesa (…)
Tu, vítima de todos nós e de ti mesma. Tu, vítima do nosso desejo não concretizado e portanto falseado e iludido (…)
Tens a inconsciente e mal definida sensação de que há um sistema social mais forte que tu ou eu e no qual devemos integrar, sob pena de ficarmos sós e desamparados. Há um determinismo social que te oprime e te define (…)
Viver dentro da juventude não se ensina, aprende-se vivendo. E a jovem e o jovem português não vivem dentro dela (…)
Jovem Portuguesa! Dou-te a minha mão e o meu corpo. Sinto os teus dedos, o teu braço. Sinto um corpo jovem junto do meu. Mas não sou um molde; sou um jovem diferente de ti. Um rapaz para quem o amor por ti é a concretização sexual, única diferença nas relações entre o homem e a mulher que devem decorrer no mesmo plano de homem para homem.


O autor desta Carta tornou-se advogado, afastou-se das lides literárias e nunca mais esqueceu a mágoa de ter ficado sozinho no meio da aridez de inteligência e generosidade que era o meio social do seu tempo. Ele, um humanista que politicamente tinha uma atitude discreta, estivera em Paris alguns meses e, quando regressara, o choque cultural com a realidade atávica do Portugal beato fê-lo lançar um grito de alerta e dor. Mas melodioso. Foi calado. Não esqueceu.

Há algumas semanas um anónimo libertário, para quem a memória não se deve apagar, pegou nalgumas “pérolas” da investigação que andava a fazer, enfiou-as num colar deu-as aos porcos, o que é uma maneira de dizer aos marialvas.

Porque o mundo de hoje se faz também com esta massa, que embora levedada tem tendência a azedar, mas sem a hipocrisia do falso pudor, aqui se reproduz este Canto de Saudade aos Homens de Hoje.

Para que não nos esqueçamos dos outros tempos…

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