domingo, 20 de janeiro de 2008

Directa

Directa de Nuno Bragança (1929-1985) é um romance que ficcionaliza a experiência do autor em ajudar pessoas a «dar o salto» para fora de Portugal, por razões políticas. O tema em afinidades com o Cinco Dias, Cinco Noites de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, mas o ambiente e o estilo da narrativa são bem diferentes. O protagonista conhece tão bem os meandros da luta contra o regime como a vida nocturna de uma Lisboa em muitos aspectos já desaparecida. Em vez do estilo seco, preciso e sóbrio e das personagens desenhadas à luz do neo-realismo de Manuel Tiago, Nuno Bragança adopta um estilo que flui ao sabor de uma imaginação por vezes delirante, indo beber ao surrealismo, à literatura americana dos anos 40 e à poesia modernista.
O romance, publicado em 1977, documenta uma acção de resistência ao regime de uma personalidade vinda de um sector da oposição ao Estado Novo que não se quis constituir numa organização política formal e que, à falta de melhor, se chamou de «católico progressista». O percurso de Nuno Bragança foi o de uma radicalização, a partir dos anos 60, que o levou a colaborar em acções políticas arriscadas organizadas pela extrema-esquerda. Outros católicos progressistas colaboraram activamente na fuga do país de pessoas perseguidas pelo Estado Novo, como Nuno Teotónio Pereira e José Manuel Galvão Teles.
Excerto de Directa:
«”Agora amocha um bocado”, pensava ele soletrando o itinerário dos transvias. Mas tinha pressa em saber o que havia – o que de mau havia – e foi outra vez cruzar a área combinada. Viu o Henrique, viu que ele o tinha visto e seguiu de novo para o Terreiro do Paço. Caminhando sem olhar para trás, acelerava progressivamente e muito o passo, em direcção do Volkswagen.
Quando chegou ao pé do carro virou-se de chofre para trás, e viu o Henrique a poucos metros, andando à velocidade a que ele o obrigara: no espaço amplo do Terreiro ainda vazio de carros, mais ninguém caminhava depressa na mesma direcção. O homem abriu a porta do carro. Sentou-se lá dentro e abriu a outra porta.
O Henrique entrou.
“Bom dia”, disse o homem. Pôs o carro em marcha na direcção de Cabo Ruivo. O Henrique entregou-se ao lento ritual de abrir um maço de “Porto”, de bater minuciosamente o cigarro contra o vidro do relógio, de o acender.
“Então o que há?”, perguntou o homem.
“O Júlio”, disse o Henrique. “Contactou-me ontem. Há indicações inequívocas de que ele está em perigo”.
“Indicações inequívocas”, pensou o homem. “Isto é mas é o diálogo de um filme português”.
Foi guiando sem falar, mas o Henrique parecia pouco inclinado a confidências. “O que é que se passa?”, insistiu o homem. Pensou: “Vá lá, ó ostrazinha. Caga a pérola que está aqui o primo ourives”.
“O gajo mergulhou”, disse o Henrique. “Eu não dizia?”, pensou o homem.
“Mergulhou?”, disse o homem. “Que tal a água?”
“Está cheia de corrente. Temos de o tirar de lá antes que lhe preguem uma amona.”
“E pô-lo onde?”
“No Estrangeiro.”
“Esse pouco”, respondeu o homem. Santa Apolónia aparecia lá à frente, à esquerda. O homem olhou o edifício de Lisboa-terminus-Grandes-Linhas e pensou no Sud-Express. O carro foi acelerado bruscamente.
“Não me parece que haja outra hipótese”, disse o Henrique.
Um pouco mais adiante o homem guinou à direita e travou. Depois fez marcha atrás, uns cinquenta metros, e parou o carro e o motor. Estavam perto duma doca.
“Ó Henrique”, disse o homem. “O aparelho de saída é o último recurso. Quando funciona um aparelho de saída há muita coisa e muita gente posta em risco. Logo à noite há reunião. Você põe o problema e a gente discute.”
“Oiça”, disse o Henrique. “Tenha calma. O caso vai ser posto em reunião. Mas acho que é de adiantar trabalho.”
“Qual trabalho?”
“Casa e passaporte. A casa é urgente, o sítio onde ele está não é seguro.”
“Porque é que ele foi para lá?”
“Chiça, oiça. O gajo andava desconfiado, havia três noites que não dormia em casa. A Pide tinha andado a fazer indagações discretas no emprego, há lá uma Secretária do Director amiga dele que topou a coisa e avisou-o. Na noite de anteontem para ontem a Pide foi a casa dele, de madrugada.”»
BRAGANÇA, Nuno, Directa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995, pp. 32-34.

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