domingo, 7 de janeiro de 2007

Memória com poesia/Poesia com memória

O GRANDE DESAFIO [Excerto]
Naquele tempo
a gente punha despreocupadamente os livros no chão
ali mesmo naquele largo - areal batido de caminhos passados
os mesmos trilhos de escravidões
onde hoje passa a avenida luminosamente grande
e com uma bola de meia
bem forrada de rede
bem dura de borracha roubada às borracheiras do Neves
em alegre folguedo, entremeando caçambulas
a gente fazia um desafio...
O Antoninho
filho desse senhor Moreira da taberna
era o capitão
e nos chamava de ó pá,
Agora virou doutor
(cajinjeiro como nos tempos antigos)
passa, passa que nem cumprimenta
- doutor não conhece preto da escola.
O Zeca era guarda-redes
(pópilas, era cada mergulho!
Aí rapage - gritava em delírio a garotada)
Hoje joga num clube da Baixa
Já foi a Moçambique e ao Congo
Dizem que ele vai ir em Lisboa
Já não vem no Musseque
Esqueceu mesmo a tia Chiminha que lhe criou de pequenino
nunca mais voltou nos bailes do Don'Ana, nunca mais
Vai no Sportingue, no Restauração
outras vezes no Choupal
que tem quitaras brancas
Mas eu lembro o Zeca pequenino
o nosso saudoso guarda-redes!
Tinha também
tinha também o Vélhinho, o Mascote, o Kamauindo...
- Coitado do Kamauindo...
Anda lá na Casa da Reclusão
(desesperado deu com duas chapadas na cara
do senhor chefe
naquele dia em que lhe prendeu e disparatou a mãe;)
- O Vélhinho vive com a Ingrata
drama de todos os dias
A Ingrata vai nos brancos receber dinheiro
e traz para o Vélhinho beber;
E o Mascote? Que é feito do Mascote?
- Ouvi dizer que foi lá em S. Tomé como contratado
[...]
Era bom aquele tempo
era boa a vida a fugir da escola a trepar aos cajueiros
a roubar os doceiros e as quitandeiras
às caçambulas:
Atresa! Ninguém! Ninguém!
tinha sabor emocionante de aventura
as fugas aos polícias
às velhas dos quintais que pulávamos
Vamos fazer escolha, vamos fazer escolha
... e a gente fazia um desafio...
Oh, como eu gostava!
Eu gostava qualquer dia
de voltar a fazer medição com o Zeca
o guarda-redes da Baixa que não conhece mais a gente
escolhia o Vélhinho, o Mascote, o Kamauindo, o Zé
o Venâncio e o António até
e íamos fazer um desafio como antigamente!
Ah, como eu gostava...
Mas talvez um dia
quando as buganvílias alegremente florirem
quando as bimbas entoarem hinos de madrugada nos capinzais
quando a sombra das mulembeiras for mais boa
quando todos os que isoladamente padecemos
nos encontrarmos iguais como antigamente
talvez a gente ponha
as dores, as humilhações, os medos
desesperadamente no chão
no largo - areal batido de caminhos passados
os mesmos trilhos de escravidões
onde passa a avenida que ao sol ardente alcatroámos
e unidos nas ânsias, nas aventuras, nas esperanças
vamos então fazer um grande desafio...
António Jacinto
(Poetas Angolanos: Antologia da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa, CEI, 1962)

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