terça-feira, 29 de maio de 2007

A outra resistência


O município de Melgaço inaugurou no passado 27 de Abril um espaço museológico dedicado a uma outra resistência à ditadura do Estado Novo – a da emigração clandestina por razões económicas. Os que saíram a “salto”, quer dizer através de redes de contrabandistas, para lá dos Pirinéus, à procura de melhores condições de vida, foram muitos milhões. Na periferia de Paris, em Champigny, criou-se uma cidade feita de improviso e de barracas soltas, que na década de 1960 acabou por se constituir na 3ª cidade portuguesa mais populosa. O jornalista Sérgio C. Andrade visitou o Museu Memória e Fronteira e dessa visita fez uma reportagem que saiu no Público de 28/5/07. Com a devida vénia aqui transcrevemos, para que não se esqueça quão vulgar e ordinário foi o fascismo do Estado Novo.

Visita guiada por um velho emigrante da terra

"Vou andando por terras de França
pela viela da esperança
sempre de mudança
tirando o meu salário."

José Mário Branco (do álbum Margem de Certa Maneira)

Saindo do centro de Melgaço, chega-se ao Museu Memória e Fronteira como quem atravessa uma fronteira. Vai-se por uma pequena ponte pedonal, uma réplica em ponto pequeno da ponte sobre o rio Minho que liga a fronteira Valença-Tui, caminho de tantas travessias, tantas aventuras, tantas miragens. Percorrendo a ponte sobre o ribeiro, surge-nos, à nossa esquerda, um espigueiro como aqueles que logo se avistam à entrada da Galiza (tão idênticos, afinal, aos do Minho). Ao fim da travessia, à direita, aí está o novo Museu Memória e Fronteira. É um edifício transparente, de betão, ferro e vidro.
À entrada, José Augusto Pereira, 76 anos, rosto redondo e expressão apaziguada de quem soube lidar com a vida, evoca as suas memórias para uma televisão galega. Este velho emigrante por terras de França (e muitas outras, como se verá) aceitou abandonar por momentos o lar que habita na pequena vila minhota para nos guiar numa visita ao novo museu que em Melgaço convoca as memórias da emigração (e também do contrabando).
José Augusto espera-nos no início do percurso que o museu propõe ao visitante sobre a história da emigração, numa região que foi das mais afectadas por este fenómeno durante a segunda metade do século XX. Ao lado, há um curso de água, metáfora da fronteira e lembrança dos múltiplos rios que os emigrantes tiveram de atravessar. E há também uma banda sonora cheia de sons do quotidiano desses tempos: passos em fuga, a música de um acordeão, o apito de um comboio ao longe...
"Até me arrepio de ouvir isto. É mesmo igualzinho ao apito do comboio que eu ouvia na minha terra, quando vinha o vento. E eu gostava de ouvir..."
José Augusto nasceu em Castro Laboreiro, em 1931. Tinha apenas 16 anos quando emigrou para França, ao encontro do pai, que no ano anterior se tinha estabelecido na Bretanha.
"Éramos dois. Arranjámos documentos - falsos, claro - em como éramos galegos, e fomos de comboio até Pamplona. Dali fomos a salto, pela montanha, para França." Para a travessia, José Augusto e o amigo tiveram de desembolsar 850 pesetas para os passadores. "Chegámos a França de manhã cedo, depois de dormirmos uma noite na montanha, era no mês de Julho, e apareceram-nos dois polícias - eram os gendarmes, o meu companheiro sabia umas palavrinhas de francês, mas eles também falavam espanhol..."
E o que aconteceu, depois - foram presos? "Não. Eles perguntaram-nos: "Cadê os outros?" Queriam mais, para nos levar a todos a Bayonne. Se fosssemos oito ou nove, os guardas que nos acompanhavam até lá poupavam dinheiro. Mas nós éramos dois. Dormimos ali mais uma noite." E José Augusto explica que, nessa altura, apenas dois anos após o final da Segunda Guerra Mundial, do que a França precisava era de mão-de-obra. A dificuldade estava em atravessar Espanha.
Melhorar a vida
O percurso do museu tem um posto de fronteira simulado. Há uma farda da guarda civil espanhola e a reprodução de uma "desgraçada notícia" num jornal da terra, que dava conta de homens baleados quando tentavam escapar de carro.
Assustava-o ver esta farda? José Augusto diz que não. "Isto é a guarda galega. Eu sou de Castro Laboreiro, estávamos ali a cinco quilómetros da fronteira, conhecíamos os galegos e eles conheciam-nos a nós; não estranhávamos nada."
Mas a sua história já tinha passado além-Pirinéus. Na viagem tinha também levado a sua "mala de cartão". Era mais pequena do que a que está no museu de Melgaço. "Era uma malinha pequena, em cartão duro, com umas cordinhas. Lá dentro tinha uma roupinha para a gente se mudar - mas eu nem sequer me lembro, aos anos que foi." Mas lembra-se, afinal, de ter "esfolado as costas" com ela. "Fez-se-me um buraco, e via-se a roupa e tudo."
Continuamos a subir a rampa para o primeiro piso do museu. Sucedem-se as fotografias documentando os vários passos da aventura da emigração, tanto a legal como a clandestina: os passaportes e registos de saída, uma vista da pequena ponte de madeira do rio Trancoso, na fronteira de S. Gregório. "Eu não fui por aí, fui a Orense, pela raia seca", recorda José Augusto. Volta a ouvir-se o comboio - o ex-emigrante emociona-se: "Ah. É mesmo igualzinho... Sobe por mim acima."
Outros seus contemporâneos, como os milhares que se lhes seguiram, viajaram de camioneta, com os inevitáveis garrafões na mão, ou de carro. Mas o barco também fez parte dos meios de viagem. José Augusto, de barco só andou nos estreitos do Bósforo e de Dardanelos, quando, anos mais tarde, em 1953, partiu de França para trabalhar na Pérsia (actual Irão), "para fazer campos de aviação". "Era tudo da Nato, sabe: depósitos de gasolina, tudo aquilo escondido. Estive lá quatro anos, depois ainda fui para a fronteira da Síria. Quando aquilo acabou, vim outra vez para França. E em 1960 fui para o Canadá."
Continuamos a subir no tempo. Imagens do quotidiano dos emigrantes já em França: o trabalho, as barracas, a hora das refeições - "dormíamos cada quatro, uma cama sobre a outra; e juntávamo-nos para fazer o comer - na mesma panela, saía mais barato para três". Mais à frente, um emigrante posa com a Torre Eiffel em fundo. "Acolá estive três vezes, lá no alto. Mas isso já foi mais tarde. E desci pelas escadas. O dinheiro, naquela altura, não se juntava muito."
E sai-lhe uma meditação sobre a emigração: "Era para melhorar a vida mais um bocadinho. Lá sempre havia mais dinheiro, não é?. E Portugal sempre foi um país de emigrantes".
Principais destinos
O Museu Memória e Fronteira também documenta essa história em gráficos. Nas primeiras décadas do século XX, o principal destino era o Brasil, com o registo de quase 80 mil emigrantes entre 1912-15. Os anos da Segunda Guerra Mundial fizeram atenuar o movimento, que recrudesceu logo a seguir, no caso de Melgaço, com o fim da exploração do volfrâmio e o abrandamento do contrabando. A partir da década de 1960, com a Guerra Colonial, aparecem novos picos de emigração, desta vez sobretudo virada para a Europa, e a França em particular: em 1966 foram registadas 8 mil saídas legais, mas no início da década de 1970 houve mais de 100 mil saídas clandestinas para França.
Não é que em Portugal não se pudesse levar a vida, retoma José Augusto. "Muitas vezes diz-se que era a miséria. Não era bem isso. Era a gente que queria ir buscar mais. Vinha um rapaz novo de lá, e chegava aos bailes com a carteira cheia de dinheiro. E eu dizia "Nah, eu também tenho que ir". Era assim."
José Augusto só regressou definitivamente a Portugal em 1983. Ainda tentou convencer o filho a abrir um negócio em Viana. Mas um problema de coração levou-o a desistir. Entretanto, viúvo, encontrou repouso num lar, com o dinheiro da reforma.
Os discos que se vêem na última sala , junto a um pequeno anfiteatro onde outros emigrantes desfiam as suas memórias no pequeno ecrã, já não lhe dizem muito.
O emigrante, de Manuel Dias, Triste despedida, de Nel Garcia, ou Desfolhada, de Simone de Oliveira, como 28º à l"ombre, de Jean-François Maurice, ou C"est la même chanson, de Claude François, já são mais para as gerações que se lhe seguiram.
Regressamos ao rés-do-chão pelo elevador: "Agora é tudo mais fácil. É como as viagens." E volta o apito do comboio. "Sobe por mim acima!".

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